domingo, 18 de outubro de 2015

Parcimônia Frenética #2 - Na ponta da língua (Parte 2)

O estranho gesto da senhora foi progressivamente posto de lado entre os pensamentos de Cherry enquanto ela completava seu caminho para casa. Tendo toda a situação bizarra sido completamente apagada de sua mente no momento em que bateu a porta atrás de si após entrar em casa.

A casa, como sempre, estava vazia. A mãe só chegaria do trabalho mais tarde, às vezes trazendo alguma coisa gostosa comprada num restaurante ou lanchonete no caminho. Ela largou a jaqueta grande e pesada no gancho atrás da porta, e pulou para fora das botas enquanto se dirigia para a escada deixando-as jogadas de qualquer jeito num canto da sala.

Ela subiu até o segundo andar da casa e foi direto para o seu quarto. Sem nem se preocupar de trocar de roupas, se jogou na cama, pôs os fones de ouvido e começou a navegar pelos diversos aplicativos e redes sociais através do celular. Sequer notou o tempo passar e o dia escurecer. Plenamente livre de todas as preocupações. Mas, mesmo assim, ouviu o carro parar em frente a casa, os passos de salto andando até a porta e as chaves girando na fechadura. Sua mãe havia chegado.

- Esther, cheguei! - clamou a mãe do andar de baixo

Cherry ouviu a saudação muito bem, obviamente. Mas não se preocupou em responder, não via sentido nisso.

- Ouch!

A mãe resmungou após um som de algo rolando no chão de madeira da sala.

- Já disse para não deixar essas botas na sala! Custa colocar arrumada na entrada, custa?!

Cherry respirou fundo e bufou. Não que tivesse um problema com a mãe, as duas se davam até muito bem. Mas como toda boa adolescente razoavelmente normal, Cherry achava sua mãe um saco às vezes. Não via problema nenhuma em deixar as botas na sala. Não é como se elas estivessem jogadas no meio do caminho, estavam num canto. E, para Cherry, nunca seriam um problema. Ela notaria as botas assim que entrasse na sala e evitaria tropeçar nelas. Simples assim.

Ela respondeu com uma desculpa pouco convincente, mas que pareceu surtir o efeito desejado. E a tranquilidade rapidamente voltou a reinar na casa. Agora com a trilha sonora era pontuada com os sons de sua mãe mexendo em potes e panelas, arrastando cadeiras e ouvindo o noticiário na TV. Sendo finalmente interrompida pelo toque estridente do celular da mãe de Cherry.

A garota tirou um dos fones do ouvido e levantou os olhos da tela do celular. Não que quisesse espiar a conversa da mãe, mas devido a uma curiosidade natural e necessidade de garantir que não há nenhum problema. Ela ouviu a mãe atender a ligação de forma séria e, apesar de não conseguir entender exatamente as palavras ditas, pôde notar que a mãe respondia com um certo nervosismo.

Ficou em silêncio e esperou o fim da conversa. E então continuou esperando, pois após a despedida ouviu a mãe subindo as escadas. Viu a sombra de sua mãe parada atrás de sua porta e a ouviu respirar fundo.

- Pode entrar, mãe. - disse Cherry antes mesmo que a mãe pudesse bater na porta.

A mãe pareceu ser pega de surpresa e demorou alguns segundos antes de abrir a porta e dar um passo para dentro.

- Você veio para casa andando hoje de novo?

Perguntou a mãe, com uma expressão severa e com toda entonação de quem já sabia muito bem a resposta.

- Sim, mãe... São só alguns quarteirões.

Cherry respondeu mesmo assim, para agradar. Mas já com um ar de aborrecimento e cansaço. Aquela era uma briga antiga.

- Já não te disse para não fazer isso? Sabe o que aconteceu hoje?! Um grupo de garotos roubou a bolsa de uma senhora na saída do mercado! Nós não moramos numa cidadezinha do interior onde todo mundo se conhece, Esther. Você sabe que as ruas do centro podem ser perigosas! Aquele seu amigo, Josh, já te disse que te daria carona sem problemas. Por que não volta com ele?!

Aquela era uma discussão que se estenderia enquanto Cherry não concordasse com a mãe. Era sempre assim. No final ela simplesmente acabava acenando e prometendo que não voltaria mais a pé, por mais que argumentasse. Mas ela sequer tinha ouvido falar de assalto algum, provavelmente alguma das amigas fofoqueiras da mãe exagerando alguma história. E, além do mais, Cherry perceberia qualquer elemento suspeito de longe e trataria de evitá-lo. Nunca tinha se metido em problemas assim antes, confiava na sua percepção.

***

No dia seguinte, a aula ocorreu normalmente. Despediu-se de seus amigos como sempre. E sequer se deu ao trabalho de cogitar voltar de carona ou pegar um ônibus. A mãe, é claro, estava se preocupando demais. Ajeitou a mochila no ombro e seguiu seu caminho andando.

O trajeto seguia como sempre, sem nenhum contratempo. O centro estava cheio, mas nada além do normal. Não notou nenhuma comoção. Deu um risada para si mesma e abanou negativamente a cabeça da preocupação boba da mãe e de suas amigas fofoqueiras.

Enquanto ria internamente da situação, parou junto a um grupo de pessoas que esperava na calçada que o sinal fechasse e os carros parassem. E ali, no meio daquela massa de gente, notou uma massa similar do outro lado da rua, esperando para atravessar para esse lado. E enquanto olhava as pessoas do outro lado, percebeu um homem estranho.
O homem usava um boné que escondia parcialmente seu rosto. Mas Cherry notou que ele a encarava. Definitivamente ele estava olhando direto para ela. A garota sentiu um estranheza na situação, um desconforto. Porém, preocupada, encarou o homem de volta na tentativa de desvendar alguma intenção incomum.

Então aconteceu. De novo. O homem pôs a língua levemente para fora e tocou a ponta com o dedo indicador direito. E ele olhava diretamente para os olhos de Cherry. Ela sabia disso. Mesmo que seus olhos estivessem ocultos nas sombras da aba do boné. Exatamente como a senhora do dia anterior.

Um comentário:

  1. Conseguiu me deixar curioso, John.

    Pensei um pouco e não consegui adivinhar o que pode significar esse gesto. Talvez se eu pensasse por mais tempo vislumbraria algo, mas tendo aqui o conforto de poder seguir lendo, é o que vou fazer. Apesar de achar que esse segredo ainda será segurado por mais alguns posts.

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