terça-feira, 3 de novembro de 2015

Parcimônia Frenética #3 - Na ponta da língua (Parte 3)

Pela primeira vez em muito tempo Cherry estava esbarrando nas pessoas e tropeçando nos próprios pés. Sua costumeira atenção acima do normal com seus arredores substituída pela necessidade irracional de fugir. A sensação de que havia algo errado com aquele gesto, com aquele homem, era tão forte que a estava deixando nauseada. Não era exatamente medo, mas seja lá o que fosse enevoava os seus pensamentos racionais e a incitava a sair dali.

Ela desacelerou o passo quando se julgou já longe o suficiente daquela situação. Respirou fundo e finalmente olhou em volta, mais para descobrir onde estava do que para se certificar que não tinha sido seguida. Ela sabia que o homem não iria atrás dela. Assim como a senhora, aquele homem simplesmente continuaria seu caminho como se nada houvesse acontecido. Tirou a toca, se sentido subitamente quente, e começou a caminhar.

Estava se achando uma idiota. Afinal, por que tinha fugido daquele jeito? As pessoas em volta deveriam ter pensado que ela era doida. O homem não tinha feito nada de mais. Aquela sensação bizarra havia saído do nada. Cherry começou a se convencer que eram os hormônios, TPM. Estava ficando paranoica. "Que merda deu em mim?", pensou e começou a rir de si mesma. A sensação estranha já a havia abandonado por completo.

O resto do caminho para casa foi mais longo do que o normal, mas completamente rotineiro.

Ela entrou, arrancou as botas e as arrumou cuidadosamente no canto da entrada, não precisava de mais um esporro. Pendurou o pesado casaco camuflado com corte militar no cabide e subiu as escadas. Passou a tarde vendo filmes e séries no tablet, e acabou evitando contato com os amigos por estar sentido vergonha de si mesma pelo seu comportamento mais cedo. Mas a calmaria foi perturbada com o som do carro de sua mãe estacionando, os passos pesados e o bater forte da porta. Ela sentiu o grito antes mesmo de ouvi-lo.

- És! Ther!

Sim, aquela forma. A separação do nome. A ênfase nas sílabas. Sim, era uma tempestade. O que será que ela deve ter feito dessa vez? Nada que soubesse, com certeza. Ela até tinha arrumado as botas.

Com um suspiro de resignação, ela se levantou e se dirigiu até a mãe. Sabia que ela não sairia do lugar até que Cherry fosse até ela. E sabia que cada segundo que demorava para chegar enfureceria a mãe ainda mais. Ela não disse nada, só parou em frente a mãe e baixou a cabeça, derrotada.

- O que eu falei? O...que..eu...fa...lei? Hã? - gritou a mãe.

Cherry realmente não sabia do que a mãe estava falando, mas sabia que se perguntasse seria pior. Completamente indecisa sobre o que responder ficou até aliviada quando a mãe voltou a gritar.

- O que custa voltar pra casa de carona?! O que custa pegar um ônibus?! Eu pago! Não precisa usar sua mesada! Eu te dou um passe mensal, é isso que você quer?!

- Não, mãe... Não é isso... Desculpa.

"É isso?", pensou Cherry, "Só isso?". Toda essa fúria, pois ela voltou para casa andando? Sua mãe estava enlouquecendo?

- Mas... Por que você acha que eu vim andando pra casa afinal?!

Dessa vez era o turno de Cherry se irritar. A mãe sequer tinha como saber se ela tinha voltado andando ou não. De onde surgiu essa certeza toda?

- Nem pense em mentir pra mim, mocinha! Eu sei muito bem que você veio andando!

De novo... Aquela certeza. Ela realmente sabia que Cherry tinha vindo andando para casa.

- Tá! Tá! Eu vim andando! Mas como você sabe disso?! Tá me espionando agora?! - respondeu Cherry elevando a voz e a irritação.

Sua mãe a encarou com uma careta assutadora. Cherry começou a se preparar para todo inferno ser liberado ali na sala e tudo se tornar uma guerra de gritos. Mas então sua mãe fechou os olhos e suspirou. Milagrosamente parecendo se acalmar.

- Não. Não... Foi a vizinha. A vizinha me disse que te viu na rua. Só isso.

A mãe respondeu, deixando os ombros caírem e largando a bolsa que ainda segurava na mesa ao lado. Ela seguiu então para a cozinha, de cabeça baixa e massageando as têmporas. Cherry esperou no mesmo lugar.

- Eu já tinha dito que estava preocupada, meu Deus. Só venha pra casa de carona com o Josh ou de ônibus a partir de agora. Por favor, Esther. Não me enlouqueça....

Cherry não respondeu. Apenas observou a mãe se afastando. Várias coisas estavam erradas ali.

A mãe não havia trazido comida, o que indicava que ela tinha vindo para casa direto do trabalho, provavelmente com pressa.

Não houve tempo entre o carro estacionando e a porta se abrindo para que a mãe tivesse esbarrado na vizinha e que tivessem tido uma conversa. A vizinha havia ligado para sua mãe no trabalho? Que loucura era essa? Elas não eram tão amigas assim, Será que a mãe havia pedido para a vizinha realmente vigiar Cherry? Isso era loucura.

E por que toda aquela fúria por Cherry ter vindo andando para casa? Nada tinha acontecido. Nada de mais... Nada mesmo... Nada fora do normal... Só um homem... Tocando a ponta da língua.

Uma leve sensação estranha familiar se remexeu no fundo de sua mente, mas Cherry tratou de balançar a cabeça para expulsar tais pensamentos. Ela respirou fundo e, num ato que ela depois se lembraria como sendo de incrível maturidade, se desculpou com a mãe e prometeu que não a preocuparia mais.

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