segunda-feira, 11 de abril de 2016

Parcimônia Frenética #11 - Na ponta da língua (Parte 9 - Final)

"Temos o sacrifício..."
"..."
"Uma delas recebeu todos os sinais..."
"..."
"Eu sinto muito..."

***

Seus pensamentos entraram num turbilhão tão confuso e agitado que era como se sua mente tivesse subitamente esvaziado. Uma sensação forte de enjoo lhe abateu ela pôde sentir o conteúdo recém adquirido do seu estômago revirando-se e subindo pelo seu esôfago. Por um momento esqueceu até mesmo de respirar.

As pernas perderam a força e quase cederam sob o seu peso, mas Cherry não se permitiu cair. Forçou seu estômago a se assentar e respirou profundamente. Gotas de suor frias escorriam pelo seu rosto. E ela finalmente começou a acreditar que aquela reação não era mera preocupação, que 'algo' acompanhava aquele gesto. Algo que ela sentia como uma onda de energia negativa varrendo seu corpo e apertando seu peito.

Finalmente começou a agarrar seus pensamentos e se dar conta dos seus arreadores. E notou que as pessoas que passavam a olhavam com estranheza e preocupação. Enxugou, então, apressadamente o rosto com o dorso das mãos, e esforçou-se para caminhar.

Andou sem rumo algumas dezenas de metros, até se encontrar num minúsculo canteiro arborizado com um banco simples de madeira. Sentou-se no banco e largou o peso do copo nos cotovelos sobre os joelhos.

Ficou um tempo ali até que notou que alguém se aproximava. Não muito tarde, mas também não tão cedo quanto gostaria. Só pôde ver quem era quando a pessoa já estava a poucos passos dela: Beverly. Uma das garotas que andava com ela e seus amigos, mas Cherry não a considerava especificamente uma amiga. Sabia muito bem que ela e Jeanette só andavam com eles por causa de Josh. E também sabia que Bev e Jean eram meninas cruéis, esnobes, e típicas "patricinhas", mas se escondiam em papéis de inocentes e politicamente corretas só para agradarem o garoto.

- Cherry? Tá tudo bem com você?

Riu consigo mesma ao imaginar o quão mal deveria estar parecendo para instigar esse grau de preocupação de Bev. E sua risadinha nervosa fez com que Bev desse dois passos cautelosos para trás, genuinamente amedrontada da menina que parecia ter saído de um filme B de assombração.

- Oi, Bev... - respondeu Cherry levantando levemente a cabeça -  Tá tudo bem... Se preocupa não...

- Tem certeza? Você parece que tá passando mal ou sei lá...

Cherry se levantou, o que fez Bev dar mais dois passos cautelosos para trás, e fez o melhor que podia para oferecer um sorriso.

- Tenho. Obrigada, Bev... Mas juro que estou bem.

Beverly não estava exatamente convencida, mas também não ia passar a chance de evitar maior contato direto com Cherry.

- Bem... Se você estiver com problemas, ou precisar de alguma coisa... Tipo, me liga. Mas você devia ir pra casa mesmo. Porque, tipo assim, você não está com uma cara muito boa.

Cherry se resumiu a acenar afirmativamente com a cabeça e depois observar a outra garota se afastar. Ela deu mais uma risada da situação absurda e se pôs a caminho de casa.

***

Ao chegar em casa, se espantou ao encontrar sua mãe na sala. Os olhos estavam inchados e vermelhos, muito vermelhos, o rosto chegava a estar manchado com as lágrimas. Ela levantou assim que Cherry entrou pela porta e foi até ela, para então lhe dar um abraço forte e espremido.

- Mãe... Mãe... Mãe! O que cê tá fazendo?! Cê tá me sufocando! Mãaaae...

Sua mãe lhe soltou em virtude dos resmungos e reclamações, e lhe deu um sorriso triste e cansado.

- Tá tudo bem, mãe? Você está estranha.

- Vai ficar tudo bem, Esther... - disse sua mãe com uma calma forçada e anormal.

- Tem certeza?

Sua mãe somente acenou afirmativamente com a cabeça e se dirigiu para a cozinha.

- Vem. Eu fiz janta. Macarrão com queijo, um dos seus favoritos. E tem sorvete de menta com chocolate chips no congelador.

Cherry largou seus sapatos na sala no caminho para a cozinha, e jogou a mochila no sofá. Não estava exatamente com fome, mas não poderia negar macarrão com queijo e sorvete de menta com chips. E também não podia negar a companhia da mãe, que ultimamente estava tão estranha.

Ela comeram calmamente, jogando conversa fora e rindo em frente a TV. Sua mãe habilmente evitou falar sobre qualquer coisa séria ou a atual situação estranha das duas. Cherry estranhou, mas não reclamou. Aquele era um bom primeiro passo. Amanhã poderia sentar e conversar com ela sobre a coisa toda do gesto bizarro. E também poderia perguntar o que tanto afligia ela nos últimos dias.

O sol já havia se posto há muito tempo quando finalmente terminaram o pote de sorvete. Ambas se sentiam tão empanturradas que quase não tiveram coragem para rolar para fora do sofá. Mas eventualmente encontraram forças para levantar. Cherry foi tomar uma ducha enquanto sua mãe lavava a louça. E então a garota esperou na sua cama enquanto sua mãe também se limpava e se arrumava para dormir.

Finalmente sua mãe foi até seu quarto e lhe deu um beijo na testa, como há um bom tempo não fazia.

- Boa noite, minha menininha.

- Boa noite, mãe...

Cherry se despediu com um sorriso no rosto e uma sonolência anormal. Até então pensou que teria muita dificuldade para dormir, mas depois de tudo suas pálpebras estavam anormalmente pesadas. Seu corpo estava dormente e ela nem notou as lágrimas de sua mãe que pingavam no seu rosto.

***

No meio da madrugada, Cherry foi acordada num susto por um barulho. Eram passos, muitos passos. Alguns mais pesados e outros mais leves. Subiam as escadas.

Tentou se levantar, alarmada, mas notou que seus membros estavam pesados e não respondiam.

Tentou gritar pela sua mãe, mas a língua parecia inchada e seca em sua boca, e não conseguiu produzir nada além de um sussurro.

A porta do seu quarto foi aberta com intensidade e descuido. Confusa e amedrontada, Cherry viu não uma, nem duas, mas várias pessoas entrando em seu quarto.

Com um sentido de ansiedade crescente, percebeu que podia reconhecer algumas daquelas pessoas. A velhinha, a primeira. O homem que correra atrás do ônibus. Pessoas que fizeram o gesto.

E então, por um momento, se sentiu animada e esperançosa ao ver sua mãe entrar atrás de todas aquelas pessoas. E euforicamente tentou emitir algum som chamando por ela.

Mas uma aterrorizante compreensão caiu sobre ela quanto todos eles, sua mãe entre eles, puseram a língua levemente para fora da boca e tocaram em sua ponta com o indicador direito enquanto a encaravam intensamente.

Um onda de dor e pânico a atingiu com força e ela começou a gritar e espernear, mas só conseguia produzir guinchos e tremer as pernas de leve.

Aquela forte sensação de enjoo e uma pontada de dor na cabeça, um forte aperto no peito... Mas ela lutou.

Lutou tanto que começou a recuperar o movimento dos membros e conseguiu se mexer com tanta força que caiu na cama.

Todas aquelas pessoas no seu quarto somente a encaravam, num silêncio e imobilidade anormais, enquanto ela se arrastava pelo chão até a janela.

Conseguiu segurar nas cortinas e se puxou com força tentando se por de pé.

Foi então que uma outra figura surgiu, e se dirigiu para dentro do quarto enquanto a pequena multidão que estava ali abria caminho de forma quase que respeitosa.

Um homem muito alto, de cabelos bem brancos e ralos. Parecia bem velho, mas também parecia forte e saudável. Ele carregava uma grande sacola de pano nas mãos, se ia na direção de Cherry com passos certos e decididos.

Cherry ainda tem tinha conseguido se levantar e olhou para o homem com temor e súplica, os olhos se enchendo de lágrimas. Mas o velho parecia impassível.

Por fim, tentou encontrar o olhar da mãe. Tentou gritar por ela de novo. Perguntar para ela o que estava acontecendo e porque estavam fazendo isso com ela.

Mas antes que conseguisse encontrar a mãe no meio daquelas pessoas, o saco de pano voou sobre a sua cabeça. E ela sentiu braços fortes a agarrando e levantando do chão.

E então só havia escuridão...

4 comentários:

  1. Por que fez isso comigo, cara!? Com essa eu não contava. Até ela? Sabia que estava envolvida de alguma forma, como eu disse antes, só que não assim. Que tristeza, desespero... =/
    Mas a curiosidade persiste. Agora as coisas parecem bem próximas de algo como uma explicação, porém, suspeito que qualquer explicação agora deve levar a mais perguntas e mais desespero.

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    1. Existem razões... Muita coisa não está respondida, fato. Mas a parada da mãe dela estar envolvida... Você está ligado que aqueles pequenos diálogos introdutórios que aparecem em algumas partes envolvem sempre as mesmas pessoas, né?

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    2. Cara! Eu não vi que estava escrito "Final"! Eu escrevi esse comentário pensando que tinha mais =/

      Ahhh não, não sabia disso. Reli todos na ordem e acho que entendi melhor.

      É um bom final, mas você pretende fazer uma segunda temporada?

      Lembrei que também escrevi um texto com final aberto e criticaram (se ler, ignore os erros de pontuação e outros):
      http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/2044629

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