"Você não pode fazer nada."
"Sempre foi assim."
"Isso não pode estar acontecendo!"
"Você vai fazer o que deve ser feito?"
"..."
"Você vai-"
"Vou..."
"Você vai causar algum problema?!"
"Não..."
***
Cherry só percebeu que estava agarrando o assento do ônibus com tanta força ao ponto de começar a rasgar o forro quando a biblioteca entrou no seu campo de visão e ela 'acordou'. Levantou depressa, a cabeça ainda leve e os reflexos lentos, e correu para a saída apertando freneticamente o botão de parada. Mesmo assim acabou saltando um ponto depois.
Percorreu apressada o caminho de volta, sentido o estômago dar saltos e piruetas. Entrou correndo na biblioteca e foi direto para o banheiro. Passou um tempo ajoelhada em frente ao vaso, com a sensação de que vomitaria ou, pior, afrouxaria seus intestinos. Mas nada aconteceu. E depois de um tempo controlando a sua respiração, começou a se acalmar.
"Eu tenho que descobrir o que é isso", pensou resoluta.
"É claro que tem alguma coisa rolando, mas eu não sei o que é."
"Pode não ser nada de mais e eu estou aqui pirando por nada", ela tentava se convencer enquanto levantava e ia lavar o rosto.
"Minha prioridade é descobrir o que, raios, é isso."
Com o rosto lavado e a resolução recobrada, Cherry saio do banheiro de queixo erguido. Não fazia ideia do que procurar, nem de como procurar, afinal bibliotecas não eram exatamente seu habitat natural. Decidiu que perguntar para alguém seria o primeiro passo para se encontrar ali e, portanto, começou a olhar em volta em busca de alguém com cara de funcionário ou ao menos entendido no assunto.
Seus olhos atentos não demoraram a encontrar uma figura que parecia perfeitamente fazer parte do cenário: uma jovem com cara de estar próxima dos trinta, usando uma saia prendada abaixo dos joelhos e um casaquinho de moletom, e os óculos de gatinho de lentes grossas completavam o estilo 'bibliotecária clássica'. O fato da jovem ter destoantes cabelos púrpuras bem curtos fez com que Cherry tivesse uma simpatia instantânea pela mesma.
- Errr, com licença... Você por acaso trabalha aqui? - perguntou Cherry.
- Por acaso eu trabalho sim. - respondeu a bibliotecária com um sorriso simpático enquanto tentava equilibrar uma pilha de livros nos braços, tarefa que seu avantajado busto dificultava.
A garota quase não resistiu a soltar uma risada e acabou decidindo ajudar a bibliotecária tirando alguns dos livros da pilha, mesmo sob protestos. E a agradeceu mentalmente por ajudar a aliviar a tensão que sentia, mesmo que só um pouco.
- Bem... Então... É que eu não costumo usar a biblioteca. E eu não sei bem por onde começar. - Cherry acompanhava a bibliotecária e lhe passava os livros enquanto ela punha mesmos nos seus devidos lugares.
- Hmm, tudo bem. Isso é normal. Poucas pessoas vem aqui tendo tanto material livre a alguns clicks de distância. - ela respondeu com o mesmo sorriso simpático.
- É... Eu espero que ainda tenham coisas aqui que não estejam na internet.
A bibliotecária deu uma risada abafada e harmoniosa.
- A maioria das pessoas que de fato aparecem por aqui fazem isso pelo mesmo motivo. A busca por algo que não há na internet. Pelo menos não ainda.
Depois de ajudá-la a organizar o livros, Cherry recebeu as instruções básicas de como buscar por livros por assunto e título usando o catálogo. Ela se despediu da bibliotecária com muitos agradecimentos e se sentindo sortuda por encontrar uma pessoa tão simpática e prestativa naquele momento.
Começou então sua busca por dezenas de centenas de páginas empoeiradas e amareladas. Encontrou um canto sossegado e logo estava praticamente soterrada por livros. Simbologia, linguagem de sinais, línguas mortas, sociedades secretas... Muita coisa que realmente não conseguira encontrar online, mas ter que ler o conteúdo quase todo para descobrir se tinha algo a ver com o que buscava desacelerava o processo.
Após algumas horas a bibliotecária simpática até veio lhe oferecer uma xícara de café, que ela aceitou prontamente. Mas sua busca prosseguiu ininterrupta até que seus olhos não fossem mais capaz de ler mais um emaranhado de letras minúsculas. E, mesmo depois disso tudo, a única coisa que tinha encontrado em relação ao gesto era que o mesmo ou um muito parecido era de fato usado por uma ordem secreta de magos no antigo Egito, e isso era praticamente tudo que se sabia sobre eles.
- John... - Cherry disse para si mesma com uma sorriso bobo no rosto, ao mesmo tempo surpresa e nem um pouco surpresa com a situação.
Decidiu que naquele dia nada mais poderia ser feito, mas ainda havia material para pesquisa. O dia seguinte seria Domingo, e por isso teria mais tempo para passar ali nos livros. Devolveu os livros para seus devidos lugares, mesmo que não precisasse, e se despediu com um aceno alegre de mão da bibliotecária simpática.
A volta para casa foi mais calma que esperava. Sábado era um dia em que só haviam metade das aulas, então todos os alunos já haviam saído. O que significa que a maioria estava nos parques de skate, nos shoppings e outros pontos de encontro do tipo, o que deixava as ruas principais e ônibus vazios.
Sua cabeça ainda estava cheia então ela só percebeu que a mão havia chegado em casa quando abriu a porta, se espantando por não ter notado o carro. E aí começou a pensar na mãe e em como a mãe estava agindo nos últimos dias. Pensou nas brigas pelas coisas simples de antes, e em como ela sequer tinha mencionado a bagunça em que tinha deixado a sala naquele dia. Pensou no jeito estranho que olhava para ela e na cara de choro. Mas sua cabeça estava tão cheia com outras coisas que não conseguia começar a imaginar o que se passava.
Quando a fome falou mais alto e decidiu descer para jantar, notou que a mãe estava no quarto vendo TV. E que sequer tinha falado com ela até então. Talvez estivesse com problemas no trabalho. Talvez estivesse com algum problema emocional. Mas Cherry não fazia ideia de como começar uma conversa com ela sem acabar despejando seus próprios problemas. Decidiu deixá-la em paz.
^^
ResponderExcluirBibliotecária estilosa! Mas quando vem o próximo? ;)
Definitivamente é vingança....
ResponderExcluirO que sei, ou acho que sei, é que há uma relação bem mais direta entre o que a Cherry está passando e a mãe está passando.
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