terça-feira, 22 de março de 2016

Parcimônia Frenética #10 - Na ponta da língua (Parte 8)

No dia seguinte, Cherry acordou se sentindo mal. Estava deitada numa posição estranha na cama, os travesseiros jogados no chão. Seus músculos estavam tensos e doloridos, e sua cabeça pulsava dolorosamente. Ao passar as mãos nos olhos notou o rosto molhado e grudento, como se tivesse chorado dormindo. Os cabelos estavam insanamente embaraçados e despenteados.

Amaldiçoou mentalmente a crise de insônia intensa que seu cérebro hiperativo lhe proporcionara na noite anterior enquanto se esforçava para levantar e arrumar a cama. Mas não havia muito o que podia fazer. Todas aquelas informações e preocupações povoando a sua mente, a sensação de que poderia estar próxima das respostas que buscava, a relação tensa com sua mãe... O que realmente lhe surpreendera era o fato de ter dormido até depois das onze, permanecendo imune aos apelos constantes do despertador do celular ao lado da cama. Um feito no mínimo raríssimo, se não inédito de fato.

Aquele estado pedia um banho quente. Longo e relaxante. Uma sessão de hidratação capilar também.

Ao atravessar o corredor em direção ao banheiro notou a porta do quarto da mãe fechada, mas ouviu barulhos que indicavam sua presença vindo lá de dentro. Parou por alguns segundos em frente a porta, sem saber se batia ou não. Estava preocupada com a mãe, mas ainda não fazia ideia de como falar com ela sem acabar trazendo todos os seus próprios problemas em pauta. Tocou a porta como se quisesse alcançar a mãe, mas por fim seguiu em frente.

Tomou uma boa "chuveirada" e lavou os cabelos enquanto a banheira enchia de água quente. Aplicou a máscara hidratante e pôs a touca térmica. E finalmente deixou seu corpo submergir no abraço confortável da água quente. Respirou fundo os vapores perfumados da banheira repleta de espuma e sais de banho. E sentiu o estresse acumulado de muitos dias de paranoia diluindo-se no calor úmido da banheira.

Depois de sair muito a contragosto do banho relaxante e drenar a banheira. Terminou o processo de lavar a máscara capilar e então aplicar o condicionador. E foi só quando se enrolou na toalha e já estava saindo do banheiro que notou o espelho embaçado e fez questão de limpá-lo, que finalmente pode dar uma boa olhada em si mesma pela primeira vez em alguns dias.

Haviam profundas olheiras sob seus olhos que davam um aspecto meio sombrio e doentio ao seu semblante. Seus cabelos, normalmente de rosa chiclete alegre ou outra cor igualmente vibrante, estavam quase que totalmente descoloridos. Seus lábios estava rachados e feridos de tanto morde-los de preocupação e ansiedade. A pele estava definitivamente pálida e ressecada, completando o quadro cadavérico de sua aparência atual.

Balançando a cabeça veementemente para espantar os pensamentos sobre sua aparência da cabeça, Cherry saiu vigorosamente pela porta. Não tinha tempo para se preocupar com essas coisas supérfluas, havia acordado tarde e ainda tinha muito a pesquisar na biblioteca que ainda fecharia mais cedo por ser Domingo. Passou na cozinha para pegar qualquer coisa para ir comendo no caminho depois de se vestir e saiu apressada de casa. Sua mãe não havia ainda saído do quarto, mas não tinha tempo para se preocupar com isso também.

***

Dessa vez fez o caminho de forma muito mais fluida e rápida, tendo as memórias da viagem anterior frescas em sua mente. Chegando logo ao seu destino e prontamente se dirigindo às seções onde se encontravam os livros que buscava. Pensou ter visto a bibliotecária simpática de cabelos roxos quanto entrou, mas ao olhar novamente não pode encontrar sinal algum da mesma.

Tão logo tinha seu material de estudo selecionado, encontrou uma mesa no canto da ainda mais vazia biblioteca do que de costume e pôs-se a continuar sua pesquisa sobre o gesto que a assombrava. E graças a coincidência estranha da seita secreta de magos egípcios apontada por John, tinha uma nova pista: sociedades secretas.

As poucas horas que tinha antes que a biblioteca se fechasse passaram tão depressa que nem notou seu estômago roncando de fome. Notou menos ainda que as poucas pessoas que passavam por ali foram todas embora e já não sobrava ninguém. A única coisa que a fez finalmente emergir das páginas empoeiradas foi a sombra de alguém parando a sua frente.

Levantou os olhos lentamente para dar de cara, para sua surpresa, com a bibliotecária simpática do dia anterior.

- Hey...! - Cherry disse com uma animação decrescente ao notar a expressão desconcertada da mesma.

- Oi... Bem... É que... Nos estamos, meio que, fechando... Agora...

Cherry a olhou meio pasma por alguns segundos, com a boca pendendo vergonhosamente aberta, antes de se dar conta do que aquilo queria dizer.

- Ih! Droga! - respondeu se desesperando e desajeitadamente começando a empilhar todos os livros.

A bibliotecária riu e tocou seu ombro.

- Calma, está tudo bem... Eu guardo os livros, é meu trabalho, sabe?

- Ah... Mas... Não. Você vai sair atrasada por minha culpa, né? Não, não, não... Olha só... Eu te ajudo a guardar os livros. Sei direitinho onde eles estavam. A gente termina rapidinho!

Rindo ainda mais, a bibliotecária tentou convence-la de que estava tudo bem, mas finalmente cedeu a insistência da garota. E as duas juntas puseram os livros em seus devidos lugares e terminaram de arrumar o que faltava da biblioteca antes de saírem.

Depois de se despedir de algumas pessoas que ficaram para terminar de trancar o lugar, a bibliotecária se aproximou de Cherry com aquele sorriso simpático que era sua marca registrada.

- Então... Você está com fome?

- Hã? - respondeu a garota confusa.

- Fome. Comida. Você come, não é? Você chegou aqui na hora do almoço e não comeu nada até agora... Deve estar com fome.

- Ah... Sim... Pra falar a verdade eu estou, mas-

Antes que pudesse dizer mais qualquer palavra ou inventar uma desculpa qualquer, a bibliotecária disse de forma autoritária:

- Então vamos comer. Tem uma lanchonete aqui perto que faz uns sanduíches vegetarianos sensacionais. Não que eu seja vegetariana, mas eles são tão bons assim.

Incapaz de negar, Cherry simplesmente acenou a cabeça e a acompanhou. O sanduíche era realmente bom, e realmente a deixou satisfeita. Nunca havia comido rodelas de pepino tão bem temperadas que poderiam facilmente substituir um hambúrguer caprichado. Sua fome também era tamanha que mal pôde conversar, mas ainda assim a bibliotecária conseguiu faze-la rir uma ou duas vezes.

Quando tentou pagar a sua conta, foi impedida sem chances de argumentação. A bibliotecária era muito simpática, sim, mas também tinha aquela característica impositiva e incisiva que se espera de bibliotecárias que não dava muito espaço para qualquer discussão. Mas Cherry não reclamaria, aqueles momentos tinham sido os mais alegres da sua semana.

A garota acompanhou a bibliotecária até, surpreendentemente, sua moto. E depois admirar e fazer mil perguntas sobre incrível a chopper retrô da mesma, finalmente se despediu.

Depois de dar as costas e alguns passos, Cherry finalmente se deu conta que em nenhum momento havia perguntado o nome da bibliotecária. Após perceber sua incrível falta de tato, ela parou e se virou depressa. E apesar de estar esperando que a bibliotecária já estivesse indo embora, a encontrou no mesmo lugar, montada na moto e olhando diretamente para ela.

- Sinto muito... - disse a bibliotecária de uma forma que Cherry mais leu em seus lábios do que ouviu propriamente.

E então, a bibliotecária pôs a língua para fora e com o indicador direito tocou em sua ponta. Em seguida virou-se, ligou a moto e partiu. Enquanto Cherry ficou lá, paralisada no mesmo lugar, com o seu coração batendo mais forte do que imaginava ser possível.

2 comentários:

  1. Pqp... Caralho... Tinha muitas coisas pra comentar, perdi tudo com o final... Choquei.

    ResponderExcluir
  2. Devo confessar que esperava que, mais cedo ou mais tarde, não fosse um completo estranho a fazer o gesto e até mesmo cogitei a bibliotecária, mas isso não diminuiu o efeito!

    Agora que li todos posts disponíveis, tenho que aguardar. E o segredo segue sem resolução.

    ResponderExcluir