quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A Ciência Básica não é a Base da Ciência

Pronto, achei uma frase de efeito chique pra falar de efeito Dunning-Kruger. Acho que a essas alturas todo mundo sabe o que isso aqui significa, não? Em palavras mais simples é: Quanto mais a gente sabe de alguma coisa, mais a gente sabe que a gente tá longe de saber alguma coisa.


Eu vou tentar trazer isso para uma perspectiva de desenvolvimento do conhecimento científico e sobre coisas curiosas que acontecem. O texto anterior me levou a fazer esse gancho que eu achei extremamente pertinente só que eu achei que ia tornar a postagem anterior grande demais, e talvez fosse levar muito pra fora daquilo que eu tava tentando discutir, que era o conceito de verdade. Aqui o nosso objetivo é falar sobre coisas que a ciência tenta responder e como ela faz isso. Teve um podcast recente dos 3 Elementos que o Carlos Ruas fez uma analogia com uma estrada. Talvez seja o caso, mas eu gosto de imaginar a ciência como uma estrutura mais de dependência. A minha mente de cientista da computação só consegue pensar em grafos, e talvez a estrada não seja tão ruim.

Qual é a pegada, a pegada é que a gente aprende e desenvolve a ciência de uma forma intuitiva porque é difícil imaginar todas as possibilidades que poderiam gerar determinados resultados. Numa idéia de: "Se eu jogo essa maçã pra cima, ela cai, então se eu jogar essa amendoa pra cima ela também deve cair." Isso se verifica, e até se verifica que uma folha cai, mas isso não é o suficiente para explicar porque a folha cai da macieira mais devagar do que a maçã. Ingênuamente considerariamos que a massa do objeto é o que faz diferença e intuitivamente faz até algum sentido, mas aí não explica porque se você coloca a folha em cima da maçã você acelera o tempo de queda da folha em muito.

Talvez a gente já saiba, mas talvez os pequenos ainda não saibam.

Nesse primeiro exemplo, eu estou discutindo o aspecto intuitivo da ciência que nos dá alguma idéia de qual é o próximo experimento que a gente tem que tentar pra realmente descobrir como a natureza funciona, mas veja que mesmo esse aspecto intuitivo de experimentação é feito sobre uma espécie de base que é todo o conhecimento que você tem do mundo atualmente. Eu denominei isso como realidade mas você pode dar outro nome mais chato tipo sistema axiomático. Só que qualquer coisa que não seja você está cagando para a sua realidade. E aí quando se verifica que não é a massa que faz as coisas caírem mais devagar ou mais rápido, se encontra uma inconsistência e passa a ser necessário reformular o sistema axiomático.

Esse ponto de onde partimos para desenvolver a ciência é o que eu estou chamando de ciência básica. Entenda que a partir de um determinado conhecimento de ciência, da pra desenvolver um monte de coisa. Você não precisa entender exatamente sobre a gravitação dos corpos celestes pra conseguir desenvolver um objeto voador tal qual um balão de ar quente, ou pra construir um barquinho pra ir pescar no lago. Só que quando eu chamo isso de ciência básica o que eu também estou querendo dizer é que isso se confunde com intuição. Anteriormente eu disse que é errado afirmar que a água é um bom condutor de eletricidade, e se você perguntar a qualquer químique pedante o suficiente pra entender que você está falando de água pura, e não a água que sai da torneira, elu dirá que a água não conduz eletricidade porra nenhuma e quem conduz são os sais minerais que se coloca na água.

Quando falamos em termos de linguagem, dizemos que as coisas são básicas ou avançadas de acordo com o nível de sofisticação delas. Uma pessoa com o conhecimento básico de matemática, deve saber fazer as 4 operações básicas da aritimética. Uma pessoa com o conhecimento um pouco mais avançado, deve saber demonstrar alguns teoremas de geometria. O mesmo vale para a ciência. Alguém com o conhecimento básico em química sabe dizer que a fórmula da água é H2O. Alguém com um conhecimento um pouco mais avançado saberia dizer que o pH da água pura é de 7. Indo além disso alguém saberia o que significa calcular o pH, e que pH na verdade significa potencial Hidrogêniônico.

Então quando alguém diz que outra pessoa não sabe uma determinada ciência básica, essa pessoa está dizendo que seu alvo não toma como verdade uma ciência mais perto da intuição. Dependendo do caso isso pode ser um elogio ou uma depreciação, porque dá quase pra dizer, que a ciência só avança tanto quanto ela derruba a intuição e muda o paradigma tornando as coisas mais sofisticadas. Isso não é verdade sempre, mas é uma boa aproximação. A teoria da relatividade, ela derruba a intuitividade da teoria de Newton - sem retirar a sua importância - e traz a luz a uma forma ainda mais precisa de se analisar o movimento dos corpos baseado também na nossa percepção. Logo a teoria da relatividade é uma sofisticação e é uma ciência mais avançada e portanto não é uma ciência avançada.

Em alguns casos essa sofisticação derruba completamente a teoria básica ao ponto da ciência básica perder a validade independentemente do contexto. Um desses casos é a definição de sexo e gênero de acordo com a biologia. Se a princípio a gente enxerga tudo como 2 sexos apenas, homem e mulher, conforme você avança o estudo desse tipo de coisa, se descobre que existe muito mais de 2 sexos, e se for marcar gênero como biologicamente determinado então mais de 2 gêneros. Essa afirmação destrói o que seria considerado a ciência básica - que nesse caso não passa de intuição - e avança a ciência.

Ao avançar a ciência você também muda a Base da Ciência. Se eu quebrei o meu conhecimento inicial que era mais intuitivo, e trago um conhecimento mais abrangente, que é verdadeiro, apesar de contra-intuitivo, então a minha base científica se altera e os próximos experimentos tem que partir dessa base mais abrangente. Eu posso fazer experimentos de mecânica newtoniana para compreender e ver que, para a maioria dos casos práticos, ela é suficiente - e essa é uma das razões pela qual ela ainda é importante - e portanto eu posso usar seus resultados quando eu tenho um determinado nível de precisão, mas eu preciso entender que há uma limitação e que há temas de mecânica clássica que não são mais necessários de serem testados especialmente aqueles relacionados a gravitação e a propagação da luz.

Isso é particularmente fácil quando a gente tá falando de ciências mais dedutivas, só que quando a gente fala de ciências humanas, a coisa fica bem mais complicada.

Base Neutra?

Algumas pessoas dizem que a ciência é neutra, e há um certo questionamento nisso. É fato que não dá pra culpar o inventor da faca pelo assassinato, mas não dá pra dizer que não existem pessoas financiando a produção e o avanço da ciência e que essas pessoas tem determinados interesses. A construção das máquinas pelos engenheiros não tem o objetivo de libertar os trabalhadores de seu serviço fazendo com que eles possam trabalhar menos, mas sim demitir trabalhadores para que patrões possam ganhar mais. O desenvolvimento da Internet pela DARPA (A lendária ARPANET) não foi uma tentativa de melhorar o mundo das comunicações, mas sim uma forma de permitir a transmissão de mensagens através dos computadores com baixo risco humano pra economizar os recursos militares.

Economizar recurso militar é bom, mas não demora muito para que os correios comece a entrar em decadência quando cada vez menos há necessidade de realizar a logística de produtos e mensagens. Hoje os correios são basicamente entregadores de produtos e cada vez menos temos cartas circulando. Quando a química avança para o uso de explosivos em minas para agilizar o garimpo, não se divide o trabalho remanescente entre os mineradores. Na verdade só se manda o excesso de mineradores embora porque quem financia esses projetos de melhoria de produtividade não está interessado na saúde de quem produz. A Uber, iFood e afins são apenas consequencias do corte de custos de comunicação, mas acreditar que a I.A. generativa foi criada com o objetivo de facilitar o trabalho dos artistas é simplesmente ingenuidade. O investimento da galera nesse tópico é pra gerar dinheiro mas a consequencia, direta ou indireta, é a precarização do trabalho, porque é assim que se gera mais riqueza.

E isso vai respingar nas outras instituições da sociedade. A Universidade que teoricamente seria o polo onde se constrói o conhecimento científico acaba sendo financiada por quem deseja encontrar novas formas de resolver o problema de alguém que tem mais dinheiro, e em um sistema capitalista, o problema de quem tem mais dinheiro é não ter dinheiro o suficiente porque se essa pessoa não tiver dinheiro o suficiente a outra vem e a derruba das formas mais absurdas as possíveis. Seja aplicando competitividade por preço, seja comprando as empresas e passando a ter uma parte dos lucros, ou seja de alguma outra forma bizarra tais como aplicando artimanhas jurídicas para minar a competitividade de uma empresa - que estava realmente fazendo merda, diga-se de passagem - como a Odebrecht e a Petrobras. Isso independe de modelo econômico. A diferença é quem detêm o poder nos modelos econômicos propostos.

Essa é uma das razões pelas quais as ciências naturais em geral são melhores vistas do que as ciências sociais. Criar métodos mais sofisticados de trabalho é exatamente aquilo que a ideologia capitalista quer. Ciências sociais vão muito naturalmente expor os problemas que a sociedade tem, no sentido de melhorá-la, e isso significa direta ou indiretamente, fornecer melhores condições para as partes mais necessitadas da sociedade, reduzindo desigualdades, desigualdade que é extremamente necessária para o funcionamento do capitalismo moderno onde os trabalhadores são vistos como mercadoria. Se o trabalhador é uma mercadoria, quem o contrata naturalmente que formas de reduzir o valor desse contrato, tal qual a gente tenta comprar os produtos sempre no melhor preço. Desenvolver tecnologia sem responsabilidade social vai precarizar os trabalhadores da sociedade mais cedo ou mais tarde, e é exatamente isso que acontece quando não há união entre as áreas de conhecimento, e isso é fomentado quando existe uma ideologia que prega conflito entre essas áreas.

Então, é lógico também dizer que, tal qual é intuitivo dizer que a ciência é neutra, quanto mais a gente estuda o desenvolvimento da própria ciência, a gente percebe que ela não o é.

2 Problemas

Tem dois problemas aqui. O primeiro é fazer com que as pessoas compreendam que o desenvolvimento da ciência é a destruição da intuição e que dessa forma as pessoas pensem melhor para além daquilo que está logo ao alcance imediato, e eu falei sobre isso no texto passado. O problema perpassa também uma questão econômica.

O segundo é um problema de ideologia, e ideologia só se muda no confronto político. O objetivo não é trazer neutralidade a ciência, mas sim mudar a base direcional das ciências para que elas melhorem a sociedade integrando as ciências, não separando-as.


Imagens:

https://jornal.usp.br/radio-usp/o-que-e-o-efeito-dunning-kruger/

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