Eu tenho dito cada vez mais que a gente tem que olhar pras coisas com senso crítico e tem muitas camadas a respeito disso e das obras com as quais a gente entra em contato ao longo da vida. Enquanto existem obras que o conteúdo está em certa medida escondido atrás da forma, tais quais a sátira presente no Homelander de The Boys, ou tal qual o aspecto fascista do Capitão Nascimento de Tropa de Elite, mas também para olhar que as pessoas as vezes não querem enxergar além dessa forma que é a razão pela qual essas criaturas fazem sucesso. Isso é um problema grande, um problema bem grande, porque ao mesmo tempo que se normaliza a imagem de fascista nas telas, auxilia os fascistas a se identificarem conforme concordam e brigam pelo espaço dessas figuras na cultura popular.
Dessa vez não tem imagemzinha porque esse mesmo caráter vai aparecer nos memes da internet. Que já é um relaxamento de conceito porque para que uma obra seja considerada um meme, ela precisa ser replicada. Se você acha que eu to falando besteira, não precisa ir muito longe, você pode pegar a definição superficial da própria Wikipedia. Só que hoje em dia, qualquer imagem com cunho levemente humorístico é chamada de meme. Na verdade, o termo no Brasil evoluiu de tal modo que meme é um sinônimo pra piada. É de se perguntar se saber a origem da palavra é importante, e eu diria que é pra que se compreenda o processo histórico que faz com que o significado da palavra mude. Se hoje a palavra Meme é um sinônimo pra piada, uma das razões que eu aponto como mais provável é que aquilo que se profilerou e continua se proliferando na internet é chamado de piada, apesar da repetição da obra não se dar por causa do humor. Veja que os humoristas de stand up fazem diversas piadas e nenhuma delas de fato é reproduzida pelas pessoas na internet.
Compreender os fenômenos que fazem um meme viralizar são importantes para as pessoas que fazem marketing para que elas possam produzir campanhas que tenham grande alcance. Se a campanha de marketing é replicada pelas pessoas ao longo das redes, a mensagem dessa equipe de marketing vai chegar bem longe. Repare bem na palavra que eu destaquei. Memes não são peças ingênuas que não tem propósito algum. Da mesma forma como eu falei de comunicação anteriormente, uma pessoa que se comunica ela tem o propósito de passar a sua mensagem, e em geral ela fala mais de si do que de qualquer outra coisa, por mais que essa mensagem possa ser muito útil para quem recebe, ela também expressa o desejo de ajudar de quem a envia. Um meme carrega uma mensagem e uma série de códigos que vão se replicar e ser compartilhados ao longo das redes. Se você fica espalhando meme do Homelander que é uma figura fascista, qual valor você está espalhando e normalizando?
-"Ah mas é só uma piada!"
Piadas não são obras de humor soltas no tempo que fazem qualquer pessoa rir atemporalmente. Isso é bastante óbvio quando a gente fala que determinada piada envelheceu mal. Se uma piada tem um contexto temporal, ela tem também um contexto espacial e ideológico. A gente tem que parar de tratar piada como se fosse só piada. Piadas tem contexto e ideologia, que quando ameaçados, tem pessoas que saem em defesa dessas coisas e quem faz o humor precisa se conscientizar cada vez mais de onde esse humor vem. Existe estudo sobre a escrita de piadas que basicamente são construções de subversão de conceito o que mostra que humor não é só conhecimento tácito não. Na verdade humoristas de stand-up em geral trabalham muito mais com texto do que improviso.
Olhando por aí, dá pra ver que uma piada não é "só uma piada". A idéia da surpresa cômica, que é o tipo de surpresa que não causa qualquer impacto negativo, é uma coisa muito subjetiva e é uma coisa que precisa ser pensada. Surpresa indica quebra de expectativa. Então quem pensa uma piada está criando uma expectativa para depois quebrá-la. Então existe muito trabalho criativo que não é visto na criação de um texto de humor. Um show do Rafinha Bastos é um gigantesco texto. A forma de entrega do texto importa? Importa também, mas isso não significa que o conteúdo não seja importante. E aqui a gente vê que é importante porque dá pra se imaginar o quanto você pensa na hora de criar um conteúdo que seja "entregável". Se você tem que pensar tanto pra conseguir criar uma piada, então elas não são "só uma piada" por mais que elas tenham surgido no improviso.
Se não é só uma piada, e é uma obra de arte em certa medida, então é uma peça de comunicação e portanto está passando uma mensagem. Mensagem essa que carrega determinados valores e, tal como eu falei sobre comunicação anteriormente. Mesmo que o objetivo não seja exatamente estabelecer um diálogo, o objetivo é passar os seus valores, não escutar o outro lado. Quando você faz uma piada você tá trabalhando com uma série de conceitos já estabelecidos na sociedade e está passando também seus valores, que estão tanto no conteúdo quanto na forma. Quando alguém fica fazendo meme com a porra do Homelander que não seja ele se fudendo de verde e amarelo, ta indiretamente também concordando com a conduta desse filho da puta.
Daí é muito fácil se esquivar da problemática da mensagem mandando "Ah mas é só meme!" Chega dessa porra. Na verdade, quando você pega e se esconde atrás do humor pra não tankar a problemática da mensagem que você tá usando, você tá validando mais ainda essa problemática, e ta na hora de parar de usar essa merda de escudo. Tá na hora de usar a jocosidade pra caçoar e zombar de quem tá em cima e tankar a porra da jocosidade que expõe as contradições de quem está fazendo merda só porque tem alguma espécie de poder na mão. Castigat Ridendo Mores, não é só fazer um humorzinho sem nenhum senso crítico pra uma galerinha rir. É expor os problemas lógicos dos pensamentos dominantes mostrando o quão danosos eles são.
Memes e Política
O Meme é exatamente aquilo que um político quer, e é exatamente aquilo pelo qual os políticos modernos estão trabalhando porque ele é a replicação de uma peça e consequentemente de pelo menos uma parte de seus valores sem esforço por parte do emissor inicial da imagem. Isso é claro se a gente levar em conta a definição inicial de Meme. Oras, se tudo o que você precisa fazer é replicar a mesma peça inúmeras vezes e a gente está na era da reprodução, porque não pagar pra essa reprodução acontecer? Temos então a artificialização de um meme.
Isso significa agora que nem todo meme é organico e os memes agora podem partir de uma organização interessada em disseminar uma mensagem. Mensagem essa que agora tem menos uma razão pra ser tankada porque agora a origem se perde como quase todo o Meme. Pra não falar que as origens se perdem. A galera do https://knowyourmeme.com tenta catalogar e dar os pareceres históricos do surgimento dessas coisas. Talvez seja mais fácil pros mais novos, onde a origem tá mais perto, mas para aqueles que são mais antigos, as coisas podem se tornar realmente complicadas. Entender o histórico ajuda a compreender o contexto onde o meme nasce, qual é a razão por trás dele, e no que a sociedade o transforma.
De forma similar, quem faz meme acaba sem querer fazendo política também. Apesar de influenciar, não entenda essa política apenas como partidária. Passar uma mensagem demonstrando quais valores você acha que são melhores que os outros é uma forma de se fazer política. Alias uma parte dos conflitos políticos acontecem por questão de diferença de valores e de moral, geralmente após a dominação economica. Guerras e políticas são duas formas de resolução de conflitos acerca do mesmo assunto, que pode ser físico, como o controle de uma mina de carvão, quanto ideal, como quando tentam controlar com quais pessoas você pode fazer sexo ou não a partir de diversos pontos de vista. Como o meme faz isso com um verniz de jocosidade, é como se ganhasse um passe livre pra colocar a sua ideologia na mesa sem o direito de ser contestado.
Quando você tem uma forma de passar uma mensagem sem ser contestado, você pode transmitir valores que a sociedade em um determinado momento consideraria abjetos como se fossem coisas ok. Isso escancara a porra da Janela de Overton colocando assuntos já superados de volta ao debate. Colocando o óbvio de volta em contestação. Se uma série de pessoas identifica um problema e cria um mecanismo pra resolver um problema que já começa a ser aceito, aí vem um bando de pau no cu fazendo imagemzinha pra desqualificar essa solução que funciona, um assunto que nem deveria estar sendo discutido entra na mesa geralmente com o intuito de ser rechaçado porque ele limita a liberdade que um grupo tem para impôr suas visões na base da violência.
Violência policial é um problema e não deveria nem ser discutido se isso pode ser benéfico ou não. Isso é um problema e ponto. Uma policia que é violenta com a própria população não passa de cão de guarda de quem tem o poder na mão. Quando começa a se distribuir imagem glorificando violência policial como forma de vingança a quem comete um crime, por maior que seja, as pessoas passam a entender que é exatamente assim que a policia tem que ser. Não precisa nem ser um policial realizando isso. Qualquer glorificação de uma violência explicável, com ênfase no explicável porque não é uma questão de ser justificável, é uma tentativa de reduzir a aversão que temos a violência. Reduzindo a aversão que temos a violência, as pessoas passam então a usar a explicação como uma justificativa. Se tá certo bater em quem comete crime, e quem rouba uma caixa de nuggets tá cometendo crime, então pode bater nesse cara que roubou uma caixa de nuggets.
Uma vez que os valores já estão normalizados, quando você tenta contestar na linha "Precisa espancar o cara que roubou uma caixa de nuggets?", a pergunta que volta é "Tá defendendo bandido agora, é?" Não, mano, a gente só acha que essa porra de postura não resolve nada. Não tem justiça em espancar quem furta uma carteira. A tentativa de se normalizar a violência e perpetuar uma idéia de guerra civil, permite que a polícia tenha mais munição pra dizer que está agindo de forma violenta. Fazer meme com piadinha glorificando a violência é justificar esse tipo de coisa.
Já Passou da Hora de Responsabilizar
Não dá mais pra ficar achando que coisinha engraçada não pode ser criticada. Tem que ter liberdade de expressão até pra humor. O Rafinha Bastos tankou a porra da piada dele, pagou o processo e, apesar da Wanessa Camargo não ter bola de cristal pra prever o futuro, doou a porra do dinheiro pro abusador João de Deus.
Então tá na hora dessas merdas que ficam fazendo meme e tem medo da contestação colocarem a cara a tapa e tankarem o que falam. Discutirem a sério as consequências e pensarem com dois neurônios o quanto desrespeito a história de luta e resistência das coisas é colocada quando se faz imagemzinha jocosa pra transmitir valores deturpados acerca de assuntos que já deviam ter sido superados. Liberdade de expressão não é Desresponsabilização.
Tankem, a porra do seu discurso, ou então parem de ficar fazendo coro com gente babaca pra pagar de engraçadinhe.
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