domingo, 25 de agosto de 2024

Conflito entre Verdade e Sobrevivência

Recentemente eu andei escutando bastante o Pedro Ivo do AteuInforma. Apesar de eu não concordar com tudo o que ele fala, o jeito que ele fala sobre filosofia é até mais interessante do que o jeito que ele fala sobre história. Recentemente ele entrou em um ódio acerca do conceito de filosofia pós-moderna que é realmente um conceito complicado de se lidar especialmente quando esse tipo de filosofia esvazia o conceito de verdade colocando ela em cheque contra a perspectiva plural das pessoas.


O que o Pedro Ivo luta, e aqui eu concordo com ele, é que a gente tem que brigar por descobrir pelo menos alguma verdade. Não pode ficar tudo numa questão de narrativa, mesmo em ciências humanas onde as coisas estão ligadas muito por uma questão de perspectiva, e é difícil obter qualquer evidência para que se produza alguma forma de ciência. Se isso é difícil em História onde você de fato tem alguma evidência empírica mais concreta tal qual um artefato ou um documento, imagine para outras como a Sociologia onde a evidência que você tem é baseada no comportamento humano e as causas são quase impossíveis de serem tratadas porque não existe um leitor de intenção (ainda).

E esse vídeo aí nem foi o último que eu vi, o que ele postou. Eu coloquei aí porque é mais um daqueles importantes onde ele bate em pós-moderno.

Apresentando Kurt Gödel

Como eu tenho uma formação diferente a minha cabeça vai por outros caminhos pra criar umas idéias meio mirabolantes. Especialmente porque, se ele escutou bastante de professores que seguem a linha pós-moderna de que não há verdade, e que tudo é narrativa e depende da perspectiva do interlocutor, eu que sou formade em Ciência da Computação escutei exatamente o oposto, ou pelo menos por um bom tempo, até ouvir falar de Kurt Gödel.

Eu vou voltar um pouco num papo que eu já falei antes em algum lugar desse blog que a gente sabe muito pouco de matemática porque o que tentam fazer com a gente é nos transformar em calculadoras ambulantes no enfiando a maior quantidade de métodos de cálculo possível na nossa cabeça, e que, por mais que eles sejam importantes pois são formas de resolver problemas que já são conhecidos, não dá pra dizer que isso é exatamente matemática, nem ajuda a verificar como a matemática se desenvolve. Esse exemplo não é muito bom porque matemática é linguagem, apesar de que poderíamos dizer que desenvolver a linguagem também é uma forma de avançar a ciência, mas isso é outro papo. Só que a minha formação é de ciência da computação e o objetivo do curso era de efetivamente fazer o projeto de computadores. Projeto físico mesmo, e aí não dá pra olhar por uma questão de narrativa. A ciência natural é o que é e pronto, e se alguém tiver um entendimento diferente de algum fenômeno, que se ponha a prova e aí a gente vê o quem tá certo.

Só que o AteuInforma fala de história, e aí é foda porque as evidências não são rígidas. Quando um artefato é produzido por um ser humano, não significa que toda a informação ali contida faz sentido de imediato. Se alguém redige um documento em alguma época, essa pessoa tinha alguma intenção nisso e esperava algum efeito a partir dessa ação. Portugal e Espanha assinam o Tratado de Tordesilhas, mas supor que aquilo ia ser obedecido é de uma ingenuidade tremenda. Só que aí, diferente das ciências naturais, a evidência que se tem não diz com precisão as coisas que se aconteceram e você passa a ter que analisar pelo prisma de diversas perspectivas, e daí, concordado com o camarada, de alguma forma tem que sair algo aproximado da verdade desse confronto de idéias. Se a ciência histórica não busca reconstruir os acontecimentos passados com a maior exatidão possível, pra que ela existe então? Pra ficar disputando narrativa? Aí não é história, é retórica.

Onde é que Kurt Gödel entra no meio disso tudo? Bom, esse grandessíssimo filho da puta por um momento colocou as ciências naturais que dependem da matemática em cheque. Isso porque ele não analisava as coisas exatamente no mundo real uma vez que, novamente, matemática é linguagem, então você pode usar matemática pra falar de diversas coisas inclusive da própria matemática, fazendo uma espécie de metalinguagem (ou metamatemática?). A conversa mole produzida por ele, que na verdade vem dura igual um aerolito, são duas consequências bem nefastas de qualquer ciência que se baseie em deduções:

  • Não é possível demonstrar que um sistema axiomático não é contraditório.
  • Em sistemas axiomáticos suficientemente complexos, existirão verdades que não poderão ser provadas nem refutadas de forma rigorosa.

Qualquer ciência desse tipo, precisa se fundamentar num sistema axiomático, que é, a grosso modo, o conjunto de verdades pregressas que você precisa acreditar cegamente pra dedução lógica funcionar. Se você começa a dúvidar do sistema axiomático você vai pra outro campo da matemática interessantíssimo que é a Axiomática. A matemática e a física, como são ciências dedutivas, possuem justamente esses dois problemas. Pra maioria das ciências que se baseia no rigor da matemática pra falar que suas afirmações são verdadeiras, essas duas informações são basicamente uma forma de dizer: "Olha não dá pra confiar na matemática". Só que, dizer que as coisas só são verdade se puderem ser provadas com lógica formal é simplesmente paia.

Qual é o Conceito de Verdade?

Seria Gödel um Pós-moderno? Talvez, mas um conceito que já era amplamente debatido desde que os seres humanos começarem a pensar sobre umas coisas mais doidas, é o conceito de verdade. Veja você que no capítulo passado, a gente tava falando de axiomas e dedução, e axiomas são verdades absolutas sobre as quais você desenvolve as deduções possíveis. O conjunto de verdades de um axioma não necessariamente precisam ser condizentes com a realidade, mas se você está tratando de uma ciência natural e está investigando fenômenos da natureza, a gente claramente quer um sistema que tenha essa coerência com o mundo material. O problema é que até agora eu não defini o que é verdade porque a linguagem aqui começa a ser uma barreira. Dá pra dizer que uma proposição verdadeira é uma verdade? Calma que a gente vai chegar lá quando a gente definir essa porra que a gente não definiu até agora.

Pra quem está interessado em analisar o mundo real, existe uma coisa que já existe, que é o próprio mundo que está sendo analisado. Dessa forma, uma proposição verdadeira é uma proposição que se verifica consistente com mundo real. Se eu disser que a água é feita de H2O, eu posso verificar essa propsição é consistente com o mundo real (a água é feita de H2O). Daí a definição de verdade para qualquer um que esteja de fato analisando o mundo real é justamente a consistência das proposições com essa coisa já existente. Uma vez que uma proposição foi verificada no mundo real, ela pode se tornar verdade no sistema axiomático daquela ciência. Linguisticamente eu fiz uma parada que eu nem sei se tem nome, que é definir um substântivo partindo de um adjetivo. Só que, em algum momento a linguagem relaxa e a gente passa a simplesmente dizer que as proposições são verdades (caso sejam verdadeiras) ou mentiras.

Isso não é exatamente problemático. Só que quando a gente desenvolve as coisas sobre um sistema formal robusto, a gente consegue ir além do experimento através de dedução lógica e aí consegue até prever coisas interessantes tais quais os movimentos dos corpos celestes ou a circuferência da terra. Em certa medida, o desenvolvimento da matemática seguiu o desenvolvimento das ciências e por causa disso as bases axiomáticas que usamos para a aritimética e para a geometria estão fortemente conectadas com tudo aquilo que já vemos no mundo. 1 + 1 não é 2 por acaso. É construído dessa forma para que adições possam ser feitas não só no abstrato no sentido de realizar previsões. Previsões essas que quando se verificam no mundo real se tornam verdades.

Veja que em um determinado momento isso se embaralha com os achados de Gödel porque se essas previsões foram feitas sobre bases axiomáticas cuja consistência não pode ser demonstrada, então, tudo aquilo que se descobre como verdadeiro através de mero formalismo está sujeito a descrença porque é possível que se descubra em algum momento que as premissas assumidas são contraditórias. Isso é interessante por duas razões:

  • Reforça o conceito de verdade como proposições consistentes com o mundo material.
  • Reforça o conceito de falseabilidade da ciência.

Existem outros conceitos de verdade? Existem. Na lógica difusa, a verdade é tratada mais como uma probabilidade de uma coisa se verificar na realidade. E falando em realidade, sabe outra coisa que a gente não definiu ainda?

O que é Realidade? (Ou o que é real?)

Definir a realidade é importante também porque tem coisas que são complicadíssimas de se compreender como reais ou não. Na verdade(opa), é razoável dizer que todas as pessoas tem uma realidade subjetiva porque existem elementos que influenciam a vida das pessoas mas dependem da crença dessas pessoas nesses elementos específicos, e isso bagunça levemente o conceito de verdade. O Pedro Ivo usa o Tio Ben da história do Homem-Aranha pra fazer esse questionamento, porque é possível que alguém diga que o Tio Ben não é verdadeiro porque ele simplesmente não existe na vida real, mas se alguém lê a história do Homem-Aranha e decide tomar determinadas ações porque viu a tragédia do Tio Ben, então mesmo que seja um personagem fictício ele acaba sendo um elemento causal que influencia no mundo material e portanto pra essa pessoa, e talvez até pra outras, podemos dizer que ele é real.

Só que aí bagunça o rolê porque se todo mundo tem realidades subjetivas e consequentemente verdades subjetivas. Então não existe mais verdade definitiva? Eu posso estar doidão, mas até onde eu compreendi, esse é o argumento central da pós-modernidade. Quando Morpheu pergunta para Neo em Matrix "O que é real?" a gente tá entrando nesse tipo de território. A partir daí, dá pra dizer que Deus é real porque as pessoas tomam ações no mundo material baseadas nesse ser que, por mais que não exista materialmente, influencia a mente da galera. É claro que tudo isso fica ainda mais bagunçado porque cada pessoa tem seu próprio conceito de Deus e de divindade. Só que uma coisa que a gente pode definir com certeza é que ficcional não é um antônimo de real uma vez que elementos fictícios também podem influenciar diretamente o que acontece no material.

Tá mas isso ainda não resolve o problema da existência da verdade definitiva. Uma proposta inicial pra resolver esse problema de uma forma simples e extremamente lógica é combinande as realidades. Uma verdade é compartilhada se ela aparece em todas as realidades subjetivas em questão. E aqui nessa mesma frase eu defino o que é uma realidade, que nada mais é do que um sistema axiomático - Nesse sentido é importante destacar que realidade é diferente de materialidade - e que portanto é um conjunto de verdades. Dessa forma, se cada realidade subjetiva é o conjunto de verdades de uma determinada pessoa, é possível fazer a interseção entre esses conjuntos e então sair uma realidade compartilhada composta pelas verdades compartilhadas entre as duas realidades.

Dá pra dizer que a realidade compartilhada é definitiva? Não. Se uma pessoa acredita que a Terra é plana e outra acredita que a Terra é redonda, a realidade compartilhada dessas duas pessoas não tem nenhuma verdade acerca do formato do planeta porque elas não geram interseção, e a gente sabe que a terra é redonda, porra! Logo a realidade compartilhada não é suficiente e precisamos de mais alguma coisa pra dizer o que de fato é verdade e o que não é. A materialidade não se curva as nossas vontades ou crenças, apenas ao nosso trabalho. Não é porque uma cambada de gente diz que a terra é plana, que ela é. É uma crença que não se verifica no material e portanto não é uma verdade, mas ainda assim está presa na realidade daquelas pessoas. Então fica a pergunta de como arrancar isso da realidade delas, porque algumas pessoas resistem até a verificação empírica.

Então Não Tem Jeito?

Qual é o problema? O problema é que alguém acredita em uma realidade que não se verifica na materialidade,.mas que gera contradição com verdades de outras pessoas e aí tem que decidir quem tá certo. É só colocar um cara pra debater com o outro? Não. É só colocar o cara contra a materialidade? Também não, porque teoricamente o cara não consegue enxergar a materialidade porque não é óbvio, ou seja, aquilo que acontece na prática não se traduz fácil na teoria. Na prática a gente pode considerar a terra plana porque a circunferência é tão grande que ela parece plana e a gente pode até tratar ela como plana. Quem é que trata a curvatura da terra na hora de construir um prédio? Só que a teoria, que nesse caso é verdadeira, diz que a terra é redonda, e ela é verificável porque quando você pega um avião ou um navio pra percorrer grandes distâncias, essa curvatura faz uma diferença absurda.

Só que agora eu começo a tirar coisas da bunda. Há uma dificuldade de sair do simples pro complexo porque a nossa sobrevivência imediata, em geral, não depende das coisas complexas. Você não precisa saber sobre todos os parangolés de química pra poder cozinhar. Muitos cozinheiros aprenderam na base da prática e resolvem as coisas a partir de todo esse conhecimento tácito que é extremamente difícil de traduzir de forma teórica. Então, naturalmente, as pessoas que estão mais preocupadas com a sua sobrevivência imediata, ou poderíamos até dizer as pessoas mais abastadas que não sabem se terão dinheiro pra comprar comida amanhã, não querem saber se a terra é redonda porque dificilmente ela vai ter algum contato onde essa verdade seja necessária.

Pensando a partir dessa perspectiva, não é possível avançar a sociedade se não for possível fazer com que as pessoas pensem a sobrevivência para além do imediato. Para tanto é necessário que se melhore a distribuição de renda, para que as pessoas menos abastadas tenham folga e possam visualizar coisas além da realidade extremamente prática. E se essas pessoas não avançam, determinadas discussões já encerradas da ciência acabam retrocedendo porque passa a ser necessário reexplicar aquilo que já está consolidado e pra piorar, outras pessoas procurando apoio político, vão alimentar essa falta de ciência pra se colocar como uma alternativa no debate de idéias e implementar seus projetos de poder.

Ou seja, não há como avançar a ciência se a economia que tanto avançou não consegue distribuir seus produtos conforme necessário. E quando tudo é mercadoria como no mundo atual onde vivemos, a distribuição de renda seria uma forma de melhorar a distribuição desses mesmos produtos permitindo que sejam adquiridos por mais pessoas, e talvez pessoas que realmente precisam dessas coisas.

A pós-modernidade auxilia nisso? Quando a pós-modernidade destrói o conceito de verdade, fazendo com que as pessoas possam acreditar naquilo que elas quiserem mesmo que isso signifique acreditar em coisas que não se confirma no material, então ela passa a ser um obstáculo. Na verdade o diagnóstico da pós-modernidade é o diagnóstico correto: há muita realidade subjetiva e a gente tem que escutar essas realidades subjetivas pra entender o que tá acontecendo. Só que escutar essas realidades não necessariamente significa dar voz a elas, porque o objetivo não é que elas tenham voz para se sobrepor a realidade definitiva, destruindo-a e fazendo com que as pessoas passem a dúvidar da ciência. Significa se aproximar das pessoas e compreender as dificuldades de avançar as realidades subjetivas para unificá-las numa realidade compartilhada que seja cada vez mais próxima da realidade definitiva.

A gente não pode deixar que realidades compartilhadas sejam esvaziadas das verdades que já estão consolidadas no mundo, verdades que são geralmente contra-intuitivas. Imaginar que a água na verdade é um péssimo condutor de eletricidade é muito difícil, quando na vida prática é muito mais fácil falar que você leva um choque mais forte quando você tá molhado. Só que ninguem fala que isso é porque a água com a qual a gente geralmente se molha está cheia de sais minerais diluídos doidos pra carregar uma corrente elétrica, só que a água pura puríssima destilada H2O e os escambau é uma péssima condutora de eletricidade. É muito mais fácil falar que água conduz eletricidade do que dizer que os sais mineiras contidos na água que utilizamos corriqueiramente conduzem a eletricidade e portanto quando te molham e seu corpo fica banhado desses sais os choques são mais fortes. Palestrinha pra caralho, né? Só que, apesar de ser exatamente assim, isso não é nem um pouco prático.

Como Buscaremos a Verdade, Então?

O fato é que a gente não busca exatamente a verdade. A gente busca a sobrevivência. Só que a gente consegue vislumbrar a sobrevivência mais pra frente quando a gente não precisa ficar lutando pela sobrevivência imediata. Vislumbrar a sobrevivência mais adiante para além do imediatismo é o que nos faz buscar verdades além daquelas que estão quase que diretamente ao nosso alcance. Você não precisa de um calendário pra saber que dia é hoje quando o primeiro objetivo é garantir um almoço caçando ou colhendo. Eu preciso saber que hoje é Domingo(quando esse texto foi publicado) porque amanhã eu tenho que trabalhar pra garantir os almoços do mês. Eu penso a minha sobrevivência mês a mês, diferente do caçador que pensava a sobrevivência dele dia a dia.

A gente precisa buscar a verdade definitiva, porque ela é a melhor, se não a única, forma de garantir a nossa existência a longo prazo.

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