quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Libertação Trágica

AVISO: Esse texto fala sobre a morte de ume ente queride.

A morte vem. Ela é inevitável, apesar de tentarmos evitar ela a todo o custo. Cada vez mais adotamos estratégias que prolongam o nosso tempo de permanência e é perfeitamente justo que o façamos porque se não sobrevivermos, não seremos capaz de viver. Isso não significa que seremos capazes de prever quando nossas botas baterão, mas significa que a gente não vai bater as botas se formos capazes de evitar uma determinada situação.

O problema é que a sobrevivência é uma prisão. Para que continuemos ativos, precisamos satisfazer uma porção de condições. Pra início de conversa a gente precisa comer; beber água; e dormir; e isso só garante o mínimo do mínimo, porque se a gente quiser continuar nossa atividade a gente também precisa cuidar do nosso corpo para que ele possa continuar aguentando o tranco, uma vez que ele decai ao longo do tempo. Tem que se alimentar bem pra ter os nutrientes necessários pra nos fortalecermos ao longo do tempo e evitarmos uma porção de doenças; tomar vacina pra não deitar pra um vírus otário para o qual já se tem métodos eficazes de defesa; se entreter pra não ter um prilipaque, e etc.

Como se esse problema não fosse o bastante, ele está circunscrito pela sociedade e pela quantidade de tempo que a gente passa em atividade, ou seja, aquele tempo que a gente não passa dormindo. Pela sociedade porque a gente não pode sair fazendo o que a gente quer do jeito que a gente quiser porque tem outras pessoas vivendo com a gente, e pelo nosso tempo porque fazer todas essas atividades necessárias a sobrevivência requer tempo. Cozinhar; se exercitar; assistir TV; arrumar a casa; e mais uma porção de atividades que reduzem o nosso tempo onde nós gostaríamos de estar de fato vivendo.

Tem uma pegadinha aqui. Eu ainda não defini o que é vida.

Vida

Vida é o oposto de morte, ou pelo menos é assim o que a gente tenta definir. Só que aí eu precisaria definir o que é morte. Fato é, quando eu definir um, eu vou definir o outro por consequência porque são conceitos opostos. Até aqui é balela lógica, mas uma coisa que eu preciso frisar muito especificamente é que vida e morte não significam atividade e inatividade. Isso implica coisas interessantes como coisas inativas que estão vivas e coisas ativas que estão mortas? Mais ou menos. A atividade é condição necessária para a vida, até porque coisas inativas não tem como fazer o que é necessário para estarem vivas. Isso quer dizer que a gente morre quando dorme? De certa forma, dá até pra dizer que sim, porque, de fato, é um período no qual você não está exatamente vivendo.

Da mesma forma, para que uma pessoa esteja viva, não é necessário que ela esteja se deslocando por si, apesar de ajudar bastante. Quando eu falo que ajuda bastante eu digo que pode ser decisivo especialmente para alguém que tinha a capacidade de se deslocar sozinhe por praticamente a vida toda. Quando a minha mãe perdeu a capacidade de andar ela morreu.

- "Ah mas ela ainda conversava."
- Morreu
- "Ah mas enxergava as coisas"
- Morreu
- "Ah mas não sei o que"
- Morreu

De certa forma ela ainda estava ativa, mas ela estava impossibilitada de viver, uma vez que ser capaz de andar significa ter um grau de independência extremamente alto, e essa independência era conceito chave para a vida dela. Quando eu uso esses termos, o conceito de Vida parece se tornar uma coisa relativa, e sinceramente parece muito mais prudente permitir alguma flexibilização do conceito, só que isso dificulta a argumentação lógica demais. Pra eu falar sobre vida, e sobre morte, e sobre libertação, eu preciso definir a vida de uma forma universal.

Existem pessoas que dificilmente diriamos que estão mortas, essas pessoas são pessoas que lutam para sobreviver. São pessoas que tem vontade de acordar no dia seguinte. Se podemos dizer que as pessoas mais longe da morte são aquelas que mais lutam para permancerem ativas, é razoável supor que essas pessoas tem vontade de sobreviver. Já outras pessoas que sobrevivem sem vontade há uma chance muito maior de dizermos que estão mortas.

A vida então é, a vontade de sobrevivência. Isso condiz com a nossa premissa da atividade porque é necessário estar ative para que se possa ter vontade, mas estar ative não é o suficiente para ter essa vontade.

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Libertação

Olhando do ponto de vista lógico, eu defini a sobrevivência como prisão, e, portanto, se a liberdade é o conceito antagônico a prisão, então o conceito antagônico a sobrevivência também é liberdade. Ao não precisar mais nos submetermos as condições impiedosas sob as quais estamos para que possamos viver temos então a libertação de nossas dores e de todo o sofrimento necessário a vida, todos os fardos são retirados de nossas costas porque, uma vez que não termos mais permanência entre os que sobrevivem, não temos mais que nos responsabilizar por qualquer coisa.

Se pensarmos dessa forma, nós deveríamos festejar a morte, e não lamentá-la. É possível que um preso lamenta a sua saída da prisão? Talvez. Pra que isso aconteça a gente tem que expandir o conceito de prisão pra além de um edifício fechado com celas onde se prendem criminoses. Se você não quiser usar a palavra "prisão" e preferir usar "grilhões", também tá tudo bem porque a idéia é falar sobre a limitação da liberdade. Nesse sentido, as duas coisas servem aproximadamente ao mesmo propósito.

Só que nós não necessariamente precisamos desejar a libertação. Como criaturas adaptáveis que somos, temos uma tendência muito maior a nos adaptar as prisões para termos alguma migalha de vida, do que destruí-las, uma vez que, por uma série de razões, destruir essa prisão, significa, na maioria das vezes, pôr em risco a própria sobrevivência, quando não significa efetivamente a nossa desativação. Repare que então, a antagonização entre a vida e a morte passa pelo próprio conceito de libertação. Certamente teríamos muito mais vontade de sobreviver se isso não consumisse todo o nosso tempo de atividade, ou até então se essa atividade não fosse tão dolorosa a ponto de perder a própria atividade passar a valer mais a pena do que a permanência.

O que ocorreu no dia 22 de Novembro então, não foi a morte, e sim a libertação de minha mãe.

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E Quanto a Nós?

Nós continuamos aqui. Não sei se numa Samsara de renascimento cíclico, mas ainda estaremos aqui por algum tempo, apesar de não sabermos exatamente quanto tempo temos. Viver todo o dia como se fosse o último não parece ser exatamente a alternativa mais prudente, mas fazê-lo imaginando que nosso fim nunca chegará também é loucura. O Dia que eu vi minha mãe na cama de hospital internada sentindo dor mesmo recebendo morfina, foi o dia em que eu mais me dei conta de que em algum momento serei eu. Em algum momento, pessoas próximas a mim também estarão em uma situação parecida, cada vez mais próximas de suas libertações.

Eu penso também nas outras culturas e como elas lidam com a morte. Dizem que os japoneses mantém suas tabuas mortuarias; em outros lugares parece que as pessoas são simplesmente devolvidas a natureza, o que me parece ser o mais correto; algumas pessoas realmente celebram com uma espécie de festa, o que foi populado pelo famoso meme Coffin Dance.

Tem o lado obscuro da coisa. Tudo isso tem um custo. Caixões tem custo, celebrações tem custo, jazigos tem custo. Não é que eu pense que as pessoas que lidam com a morte tais quais coveiros ou legistas não deveriam receber por seus trabalhos, mas tornar isso uma espécie de mercado é algo meio estranho pra mim.

E agora, na prisão da sobrevivência mais tarefas surgem de aproximação de outras pessoas antes que seja tarde demais. Que merda! Eu não quero que, nem a minha vida, nem a de outras pessoas, seja uma eterna priorização da atenção que eu dou para as outras pessoas devido ao escasso tempo que eu tenho nas mãos. Pra piorar, eu serei cobrade, nós seremos cobrades, e as pessoas terão ressentimentos quanto a isso mesmo sabendo que estamos todes vivendo prisões da mesma natureza.

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Na verdade o que eu queria mesmo era fazer alguma espécie de texto de homangem pra Hilce Veronica, mas a verdade é que desde muito tempo eu entendo que a melhor homenagem que podemos fazer para aquelus que se foram, é transformar o mundo em algo melhor para quem ainda está aqui e quem ainda está por vir.

Só que eu duvido muito que eu tenha essa capacidade.

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