domingo, 27 de fevereiro de 2022

Beirando a Insanidade

Raphaela entra no divã do psicólogo, o Dr. Raphael. Ela o escolheu por uma coincidência de nomes. O que não é nem um pouco lógico, mas felizmente parece que resolveu o seu problema. Não é a primeira vez dela no consultório, e provavelmente não será a última. Ela está tão acostumada que se veste quase de pijama. Colocou a primeira blusa que pegou na gaveta, botou uma calça jeans e tacou-lhe as havaianas no pé. Ele, por ter que atender mais gente, tem que estar mais engomadinho, mas secretamente anseia por vestir o mesmo tipo de indumentárias despojada.

Ela é trans. Então conserva parte do biotipo masculino que se construiu. É alta, tem ombros largos, mas isso não importa. Ela já está fazendo a terapia de reposição hormonal, e algumas mudanças vem aparecendo lentamente. Ele é até menor que ela, e deu o laudo para que ela pudesse iniciar as medicações, uma gratidão que ela nunca vai esquecer, fazendo os seus corres diários, entregando comida aqui e ali, sob a crueldade dos malditos aplicativos, mas a renda de verdade dela vinha da prostituição.

E infelizmente, Raphaela tem piorado o seu quadro de depressão.

- Deite-se, Raphaela. - Pediu o doutor.
- Claro, doutor. - Ela se deitou conforme respondia.
- E então, como estamos hoje?
- Mal. - Eles fazem silêncio por um momento. - Mas até que tá dando pra sobreviver.
- E como você se sente em relação a isso?
- Eu não sei... Eu não sei... - Ela fecha os olhos e balança a cabeça, visivelmente transtornada. - Eu não sei!
- Vamos analisar. O que você sente quando você se prostitui?
- Eu... - Ela pensa cuidadosamente pra responder. - Eu sinto como se eu estivesse cumprindo a única coisa que eu... - Ela vai matutando. - Que eu sei fazer? Não. Eu sei fazer outras coisas, mas talvez essa seja a única mesmo que é útil.... - E então ela vai com isso. - É. a única coisa que eu consigo fazer que é útil.
- Mas você entrega comida, não é?
- Eu sei, mas parece que eu tô fazendo alguma coisa errada.
- E por que?
- Porque eu não me sinto preenchida a cada prato entregue,
- E quando dá, pelo menos sente alguma coisa.
- É. sabe, eu sinto como se esse seja meu destino. Não ser muito mais do que uma boneca inflável, apenas para ser abusada e aproveitada.
- Mas é isso que você quer?
- Eu... Não sei...
- É complicado, eu entendo.
- É porque eu sinto que eu sou útil, mas eu me pergunto se é só isso, se esse é o fim.
- Esse é o fim apenas se você quiser. Você sempre pode mudar isso.
- Mas como saber o que eu quero?
- Essa é a pergunta mais difícil. Uma coisa que a arte moderna trouxe foi a afirmação: "Não sabemos o que queremos. Sabemos o que não queremos." De fato, é muito mais difícil definir uma coisa só pelo que ela não é. Se um lanche não é pizza, bom, você sabe que ele não é pizza, mas o que diabos ele é então?
- Isso não responde a pergunta.
- Porque ninguém sabe responder essa pergunta. Saber o que se quer é um dádiva que poucos tem.
- E não tem nenhuma diretriz?
- Olha, isso é totalmente pessoal, mas talvez ajude. Você não tem como saber se gosta de mais coisas se você não for atrás de mais coisas. Há o risco de no final você realmente querer ser apenas um brinquedo sexual, mas ninguém vai poder dizer que você não tentou.
- Ok...
- Mais alguma coisa?
- Eu não sei... Me sinto suja com a possibilidade de ser um brinquedo sexual.
- Sexo não é ruim. Faz parte de todos nós.
- Eu vou então procurar algo a mais para fazer. Se tudo mais falhar, acho que é meu destino.
- Lembre-se que você não precisa se curvar a ele.
- Vou me lembrar disso.

Raphaela paga o psicólogo e sai do divã, o ônibus é em direção ao próximo cliente.

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